quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra 
vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se 
acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se 
acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as 
cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se
acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A
tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus 
porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não 
dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no 
ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido
o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a 
guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para 
os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações
de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia 
da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a 
esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir 
para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando 
precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o
que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com 
que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E
a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que
pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na 
rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a
televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata
dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas 
de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro
tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da 
água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se 
acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a 
hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma 
planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em 
doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um 
ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente 
senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está 
contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o 
trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se 
no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e 
ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se
acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se 
acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e 
baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. 
Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si
mesma.
Marina Colasanti

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